Diferenças e desigualdades: nosso racismo cordial

   

Do diferente ao desigual: o racismo cordial brasileiro

Por Valéria Brandini - Cientista Social (Antropóloga), sócia-fundadora da BR Insights, Pós Doutora em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo.

A diferença não é desigualdade. Enquanto o brasileiro não entender os significados distantes destas duas palavras, o racismo cordial vai continuar ferindo a nós todos enquanto nação.

Quando eu nasci, minha mãe, pedagoga, me deu duas bonecas exatamente iguais, uma negra e uma branca. E para mim elas eram exatamente iguais. Na verdade, são até hoje. Eu fazia o jardim de infância num colégio de freiras Montessori, onde as outras crianças tinham três babás e nos davam brinquedos Waldorf e aulas de etiqueta. Na época eu acompanhava minha mãe, também professora em escolas rurais da periferia, no Projeto Minerva e Projeto Rondon, onde as crianças não tinham sapatos e brincávamos com vaquinhas feitas com manga verde que apanhávamos nas árvores das fazendas e montávamos com gravetos.

Até então eu percebia e vivia ludicamente a diversidade entre crianças impecavelmente tratadas e coercitivamente disciplinadas do colégio e aquelas remelentas e divertidas das escolas rurais e extremas periferias, com quem eu aprendi a subir em árvore, fazer brinquedos com sucata e brincar em rios.

Eu entendia e vivia a diversidade como igualdade. A diferença era riqueza, a possibilidade de várias realidades a serem experienciadas onde o julgamento de valor das diferenças não era verticalizado pelo etnocentrismo. Éramos diferentes, mas não éramos desiguais. Cada elemento da diversidade que o Outro trazia não era visto como preconceito, era mágico! Eu trocava bonecas da Estrela por bonecas de pano com cabelos de sabugo de milho e sentia que saía ganhando - e na verdade saía mesmo! Qualquer criança com possibilidade econômica podia ter uma boneca da Estrela, mas só eu tinha a boneca feita pela Dona Diassis, como era chamada Maria de Assis, merendeira da escola rural que confeccionava bonecas para as filhas à mão.

Com o tempo percebi que os adultos configuravam a diferença que eu via como diversidade, sob o estigma da desigualdade, onde aquelas crianças de pele mais escura, de pés descalços e roupas esfarrapadinhas eram vistas e tratadas de forma diferente das crianças de tez mais clara, de cabelos impecavelmente penteados, adornados com fitas e roupas que as impediam de brincar comigo na areia do colégio, onde eu sempre me enfiava pra brincar como brincava com as crianças da escola rural e onde comecei minha longa jornada de maus exemplos - que nunca abandonei vida afora. Eu não entendia porque eu podia trazer as crianças negras e pobres para brincar em casa assim como eu trazia as crianças do colégio e as mães dos meus colegas não deixavam essas crianças ir brincar em suas casas. Só com o tempo eu entendi.

Entre as crianças da escola rural e da periferia, eu era a branquela, a gorda, a rolha de poço, a italianinha e tinha o tiziu, o leitão, o japonês, a neguinha. Nossas diversidades eram razão de brincadeira, de tiração de sarro, de jocosidade, a diferença era diversidade, horizontal, marcadores de individualidades e não de desigualdades.

Esses mesmos adultos, dentre os quais os pais dos meus colegas do colégio de freiras, cujo comportamento, em suas minúcias, expressava a desigualdade em relação aos meus amigos de infância, criaram umas regras e hoje eu não posso chamar meu brother de fumaça, minha amiga de neguinha, não posso fazer brincadeiras sobre as nossas diferenças como fazíamos quando éramos crianças, pois segundo os politicamente corretos, esses chatos-hipócritas, qualquer referência jocosa a cor da pele que não seja a branca é racismo, preconceito, visão pequena, burguesa de exclusão das minorias, crime inafiançável e, acima de tudo, determina que você é DO MAL.

Mas enquanto eu não posso mais fazer aquelas brincadeiras de crianças com meus brothers, grande parte dos que não fazem brincadeira por que hoje é crime e 'pega mal' em círculos sociais, tem atitudes discriminatórias veladas, associam negro a pobre - esse é o grande preconceito que perpetua o racismo no Brasil e tratam crianças e adultos de 'outra' etnia com uma condescendência e 'compaixão desigualitária' de madame que dá esmola ao filho de cego pedinte na rua.

O racismo é um grande problema em muitos países, gera guerras, mata e machuca muita gente. Razão pela qual muitos alegam que no Brasil, como não ocorrem essas coisas em função da discriminação-ativa, ele não exista, pois racismo mesmo é como os dos norte-americanos, que quando racistas nem conversam com ou aceitam ser atendidos por negros ou a etnia a qual discriminam. Mas vejam, quando este cidadão é racista de fato, ele expressa, expõe e sustenta seu racismo, por mais hediondo e desumano que seja, ele é explícito.

No Brasil, um pais de 'homens cordiais', de homens e mulheres que pensam mas não expõem opiniões para não afrontar o status quo, ou os círculos de poder, o pior dessa herança patriarcal rural - de um quase-feudalismo emocional de senhores e vassalos, que 'abafam o caso', que sempre entram com um 'deixa disso' no meio de um debate acalorado - é que o fato da não exposição de idéias e sentimentos em relação a algo gera esse preconceito enrustido, esse 'racismo que não ousa dizer o nome', que se faz de politicamente correto e humanista e diz que "Ora, não sou racista, tenho amigos negros", mas que se questionado sobre ter um genro ou nora negra e misturar o sangue, já declara "bem, aí muda tudo, aí já é diferente...".

Sim, ninguém cria uma guerra pelo racismo no Brasil, mas é só ir numa delegacia na periferia de São Paulo e ver a estatística de jovens trabalhadores e estudantes que são mortos constantemente pela polícia e a despeito das desculpas esfarrapadas de que foram confundidos com criminosos, foram assassinados por uma única razão: são negros.

Me lembro até hoje, quando eu fazia doutorado na USP, do caso em que o grande geógrafo Milton Santos foi dar uma palestra na ECA e foi barrado na entrada da universidade por seguranças que queriam saber "o que ele ia fazer lá", despertando suspeitas porque ERA NEGRO, ao que o grande virou as costas e foi embora, com toda a razão.

O racismo cordial, ou racismo à brasileira é uma mácula na nação. É aquele racismo que não se mostra racista, que diz que aceita porque toma café junto, mas não mistura o sangue, que diz que sempre tratou bem aos negros porque deu sapatos usados para a empregada e que passa isso de forma atávica para os filhos por meio das pequenas estruturas condicionantes de desigualdade que desqualificam a diferença.

A diferença é a melhor coisa que nós temos. A diferença é o traço do aumento de repertório, da inclusão do novo, da ampliação do olhar para fora, de sair da caixinha, de ampliar horizontes ao perceber, reconhecer e trazer o Outro para si. Mas a diferença não é desigualdade e enquanto o brasileiro não entender os significados distantes destas duas palavras, o racismo cordial vai continuar ferindo a nós todos enquanto nação.  

Fonte: https://www.huffpostbrasil.com/valeria-brandini/do-diferente-ao-desigual-o-racismo-cordial-brasileiro_a_21669164/

 

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