Olievenstein e as dependências químicas - parte III

 

Tratamento de dependência química na visão de Claude Olievenstein 

Por Pedro Tavares 

Pouco a pouco o sujeito se forja em uma espécie de querer viver, fonte de desejos mais humanos, como o demonstra, por exemplo, o desejo de ter um filho.

Do mesmo modo que o encontro com o produto fez dele uma espécie de mutante, é uma nova mutação que está em vias de acontecer: somente ele sabe algo mais do que a opinião geral ( é preciso dizer que sua única porta de saída será a aceitação do engavetamento destas duas mutações, organizando-se uma vida psíquica e social em volta delas)”. Donde o papel insubstituível de um terapeuta que não esteja cego pelos preconceitos normativos ou científicos. O terapeuta deve, neste estágio, aceitar  que a cinética de uma relação nem cúmplice nem perversa permita ao sujeito construir um edifício psíquico mais sólido. 

O risco dos preconceitos normativos ou científicos – portanto, de alguma forma, o desejo do analista – é ilustrado por Lacan com a imagem da Dáfnia, um pequeno bichinho também conhecido como pulga d’água. Esse animalzinho precisa, para se equilibrar, introduzir em seu aparelho auditivo pequenos grãos de areia. Uma vez introduzidos, fazem as vezes de guizos necessários para o bichinho se movimentar com o equilíbrio. Pois bem, experimentadores maldosos substituem os grãos de areia por grãos de ferro, para depois se divertirem com o bichinho e um imã.

E Lacan afirma: “ a voz portanto não é assimilada, é incorporada. É isso que serve de modelo para o nosso vazio. Ele serve de modelo do lugar de nossa angústia. Mas, observem, só depois do desejo do outro ter assumido a forma de uma ordem. É por isso que pode desempenhar sua função iminente de dar à angústia sua resolução, que se chama perdão ou culpa, mediante a introdução de uma nova ordem. Que o desejo seja falta, diremos que essa é sua principal falha, no sentido de que alguma coisa lhes falta. Mudem o sentido dessa falha, dando-lhe um conteúdo – na articulação de que? Deixemos em suspenso – e aí estará o que explica o nascimento da culpa e sua relação com a angústia”. 

Se a voz do terapeuta se substitui à Ordem Simbólica – o grão de areia – mantendo-se no nível da relação especular imaginária – o grão de ferro – seu paciente é atraído para seu imã – seu ideal do eu. E o resultado que se produz é um sujeito dividido entre perdão e culpa, com a angústia sempre como pano de fundo.  A questão não é o que o terapeuta quer, mas a relação entre a demanda e o desejo do sujeito.

E Lacan arremata: “ até porque aquele que se admira mais é aquele que se combate. Aquele que é o ideal do eu também é aquele que, segundo a forma hegeliana da impossibilidade das coexistências, deve-se matar. ”

Na visão de Olievenstein , que prossegue: “ Então o sofrimento do toxicômano se institucionaliza. Se o sofrimento participa do novo estatuto do toxicômano, não será mais como o todo caótico e exclusivo do estágio anterior. A força desse processo é inelutável, quando o sujeito renuncia à sua morte. ”   Este alívio só existe ainda pela substituição, graças à solicitação terapêutica. Trata-se de manobras de guerra que nada tem a ver com a lentidão temporal de uma cura analítica: é preciso desalojar o obstáculo, contornar a resistência, seduzir, confortar, fazer mal, partilhar, zombar. Em suma, deixar o menor lugar possível para a angústia e a memória das passagens ao ato perversas. Trata-se também de um jogo, o que torna menos angustiante a angustia: jogo que se transforma em desejo e vida, reintroduzindo o riso, mesmo que se já amarelo. Aqui há TRABALHO, como se fala do trabalho de parto. “

Este sofrimento torna-se tanto intelectual como instintivo; o sujeito encontra nas armas culturais de seu tempo, e porque não na psicanálise, os meios de um combate que ele pode travar, contra a angustia revoltada de um não-eu responde progressivamente um eu culturalizado, o que torna possível uma renúncia a uma identificação totalitária, a este ignorado percebido no momento do espelho quebrado e tão procurado no e pelo descomedimento. O sofrimento se focaliza na inutilidade de todas as coisas, o futuro se torna o doente mais ou menos aceito.

Este caminho tão difícil para percorrer deixa um pouco de sabor de amargura: no fim, não há lugar senão para a repetição da banalidade. O sofrimento está na renúncia.“ “ ser homem é estimável, ser anão torna-se uma mutilação. Não há coabitação possível entre passado e o presente. O prazer em sua memória deve ser evacuado, para eludir qualquer tentação catastrófica. A amargura é a medida do tempo que ele precisa reaprender, enquanto ontem um segundo valia espaços intersiderais.

Mesmo quando o voluntarismo traçou um caminho, seria inútil acreditar que a incrível mistura de contradições desapareceu. Simplesmente o reforço ortopédico dos farrapos do ego permite ao sujeito fazer suas escolhas, remetendo o resto para o passado.

Se a droga era uma espécie de prótese para colar a fratura do espelho, o lugar da terapia fornece uma nova prótese para o sujeito, através do reforço ortopédico de seu ego. Contudo, o que acontece quando se retira uma prótese ortopédica é que o órgão fica atrofiado.

A definição freudiana de Inibição é a de uma restrição na função do órgão, sua incapacidade de funcionar a contento. Essa inibição aparece no discurso dos Grupos como de “ inadequação do sujeito”.

O sujeito se afirma “ inadequado “ para trabalhar, conviver socialmente, se relacionar sexualmente, fazer amigos, desempenhar funções maritais e paternais, e etc.

Esta Inibição – bem como as modalidades lacanianas de embaraço, impedimento e efusão – tem relação direta com a constituição de sua autoimagem – no estágio do espelho –  o corpo próprio e o ideal do eu – a instância responsável pelas idealizações – é o que faz o sujeito não se perceber desejável, possuidor de atrativos, digno de ser objeto de desejo e portanto de desejar também, e será objeto de artigo específico no futuro, pela importância que tem tanto no tratamento como na constituição da dependência. “ Porém o fundo afetivo será sempre a amargura, a ambivalência em função da importância do não-dito. Um não-dito que se parece, guardadas as proporções, ao não-dito dos deportados dos campos nazistas, como se toda a experiência fosse intransmissível. Para o sujeito esta perda continuará um drama que é para ele difícil de objetivar: a fratura não está mais entre ele e si mesmo, ela está entre ele e os outros; a amargura não está mais na falta, ela está na mentira por omissão permanente, sem sublimação possível.  Jamais na aventura humana a obrigação de ruptura é tão totalitária, sem nenhuma certeza de conclusão feliz: desejos e instintos devem ser impiedosamente censurados. É preciso dar lugar para a construção cultural de que falamos, verdadeiro aprendizado de um democracia psíquica como uma democracia social. O movimento desta democracia, por doloroso que possa ser, ás vezes, não obstante, é um movimento. Ele fornece assim uma gratificação ao ideal do ego”. 

A oposição aqui é entre a democracia psíquica e o autoritarismo da imposição de um único objeto como passível de dar satisfação ao sujeito. É a submissão ao princípio da contingência dos objetos para o prazer humano, o que lhe dá maior flexibilidade quanto ao que lhe satisfaz, por um lado, e por outro, menor idealização (exigências e críticas) quanto a si mesmo e aos seus semelhantes. Ou seja, a possibilidade de gratificação do ideal do eu. “ Apoiando-se agora, não mais na recordação do prazer e da fusão, mas na recordação do lado interrompido dos efeitos do produto, o sujeito é auxiliado a admitir a impossibilidade de integrar todas as tendências contraditórias inerentes a seu psiquismo. 

O mundo pulsional, relativizado, é colocado no lugar dos efeitos do produto como o são, mais ou menos, as atmosferas de angustia e sofrimento. Pode-se esperar que seu impacto compulsivo enfraqueça.” Porém não há antídoto para a memória da fratura, por um lado, do prazer por outro, senão a construção dessa democracia psíquica, enquanto processo ativo e móvel das séries de equilíbrios instáveis. Unicamente o aprendizado íntimo desse processo produz a aquisição de um saber competitivo com o prazer e o sofrimento em sua memória. Renunciar a isto se paga com esta saudade que a qualquer momento pode se transformar em melancolia, quando o sujeito não é mais do que “ o espelho da morte”. Quando a nostalgia se mobiliza contra o sofrimento, será ou a recidiva ou a melancolia. Será também a impaciência diante da lentidão das coisas: o tempo está no equilíbrio instável, quer-se agarrar ao que vai deixar de ser e ao que não vais deixar de ser.

O sujeito e seu terapeuta tropeçam nesta impossibilidade que não podem contornar senão realizando a noese das coisas (a apropriação pelo pensamento dos objetos): a transferência torna-se um valor,  como a falta, mas é necessário um esforço, uma tensão permanente para aderir a tal noese. 

O risco é que se esterilize qualquer risco – exceto este –  essencial de valorizar a escolha consentida do sujeito, como um padre que consegue verdadeiramente renunciar a sua sexualidade. Se o sujeito desintoxicado não se acalma nunca, se à nostalgia junta-se a decepção, existe também uma imensa estranheza; apesar de tudo o que acabamos de descrever, o sujeito vive cada dia sem ser confrontado com a necessidade compulsiva da repetição e a repetição impulsiva da necessidade. 

O conceito freudiano de Repetição como uma formação do Inconsciente – o desdobramento que Daniel Lagache efetuou e Lacan desenvolveu – é estratégico para o tema da Recaída. Com efeito, essa não é outra coisa do que a Repetição em ação, muito mais do que um fenômeno volitivo, consciente. 

Quando se consulta os Manuais de Psiquiatria, a explicação para a perda de controle sobre o uso da droga, afora os aspectos fisioquímicos – que importam, mas não tanto, é a de que o indivíduo se cansa de tentar exercer o controle, sucumbe a essa pretensão. Abre mão, por assim dizer, do controle do ato pela vontade. Mas isso não condiz com a experiência vivida pelos toxicômanos, nem com qualquer princípio de estatística (se é meramente uma questão de vontade, bastaria treina-lo para o consumo moderado. 

Certamente a ciência comportamental já teria descoberto exercícios para o camarada exercitar sua “vontade de moderação”. Ainda que não todos, alguns certamente modificariam seu padrão de consumo desta forma.). Como isso não ocorre, é somente com o conceito de Inconsciente é que pode haver compreensão da complexidade do fenômeno da recidiva. 

A dinâmica da Recaída também deve ser objeto de artigo oportuno tempore.  Ele vive, pouco a pouco, a experiência da não-dependência, não podendo mais falar da mesma forma sobre a falta, porque, de algum modo, falta-lhe a falta. Seu mais antigo companheiro tornou-se por sua vez uma noese, um não saber que se parece com os não saberes banais, infinitamente menos dolorosos, sobretudo menos inefáveis e portanto mais familiares ao terapeuta que se reconhece neles melhor, comunicando-se melhor com o sujeito. 

Quem se despe assim merece um imenso respeito, porque realizou um trabalho ao máximo possível, pois tudo o que foi anterior ( descomedimento, caos, etc.) era vivido como o único possível,  era em todo o caso impossível de discutir por temor que o pseudo-espelho, mais ou menos colado pelo produto, ou pela recordação do produto, viesse a quebrar novamente, sem nenhum imaginário, abrindo o buraco negro de um escancaramento impossível de preencher e a entrada sem fim da angustia, em uma noite sem amanhecer.  É dizer que o sujeito não ignora nada deste risco, absolutamente inimaginável para qualquer outro que não ele, e que os resultados obtidos por ele, apesar da saudade e da decepção, são-lhe inestimáveis. Apesar do engano e do não apaziguamento, ele vive uma iniciação e uma vitória, ele não é nem será jamais deus, mas ele não está nem estará jamais no inferno! 

Ele se aceita e sabe o que um homem pode querer dizer, aquilo que não é dado a qualquer homem! Percebe sua vida como se houvesse muitos espelhos à sua disposição, sem se enganar com o fato de que se trata verdadeiramente de espelhos, e não dele mesmo. Porém ele não é mais do que espectador, ele procura e escolhe seu espelho preferido; o simbólico se funde com o real, ele pode aceitar a noite, que deixa de ser o monstro que ele frequenta desde sua primeira infância. Aceitando a noite, ele aceita o “entretempo”. A contiguidade pode substituir a continuidade quase fusional que o fazia sobreviver. Terror ou prazer, nada mais é “ tudo, imediatamente agora”. O sujeito se torna capaz de obter satisfações na espera e no adiado. Aprendendo a esperar, aprende também a lei, ele que sempre foi um fora da lei e que, agora, não usa mais seu imaginário até não poder mais. 

A base sólida e real deste estágio continua a ser a relação terapêutica, que irá lhe permitir agora explorar outras áreas possíveis da realidade por associações sucessivas que constatam que estas atitudes não produzem nem dores excessivas, nem angústias insuportáveis. Porque para ele não há tempos melhores a esperar, nem piores a temer do que tudo o que ele viveu. A ambivalência continuará, mas mais construtiva: ao se prolongar, perpetua a ilusão de uma liberdade possível, atenuando o sentimento de ter sido feito de bobo. 

Pouco a pouco o sujeito se forja em uma espécie de quer viver, fonte de desejos mais humanos, como o demonstra, por exemplo, o desejo de ter um filho, portanto de viver, porque a existência é confirmada pela reprodução. Este querer viver na e para a espécie é vivido como uma vitória lúcida sobre o instinto de morte. Esta morte onipresente, desde a primeira infância, até que se transforme em desejo de tal maneira monstruoso, de tal modo incestuoso, de tal modo ilegal, o toxicômano a mascara com a lua-de-mel com o produto, depois com a falta e com a dependência.

Agora o toxicômano pode viver com um desejo de morte relativizado e um medo de morrer noético, porque seu discurso afirma seu próprio valor. Este processo é evidente quando o sujeito entra em psicanálise, mas igualmente nos demais, para quem, entre o “ Acabou, eu quero cair fora” e o “ Eu sei que não quero recomeçar”, existe a importância do “ Eu sei”, que está condensado em todo este trabalho de que acabamos de falar: este “ eu sei” pode se revelar falso, mas significa já obrigatoriamente que “aquilo” é agora conhecido, reconhecido pelo sujeito, e deste ponto ele não pode mais voltar para trás. Ao dizer “ eu sei”, ele diz “ é” e adere a isso. Aquilo lhe fornece uma direção de vida que está em vias de se tornar operatória, permitindo-lhe tomar suas decisões. 

Simbolizando o desejo de terminar com a droga, ele lhe atribui um valor positivo em relação com o sofrimento, ele pode viver na possibilidade de uma vitória, e a angustia, ela também noetizada, torna-se agora o medo de uma punição, no caso que pretendesse recomeçar com o produto. Oferecendo-se como alternativa para a punição, ela se torna também construtiva, tornando-se a amurada do sujeito. 

Mesmo se o sofrimento tenha sido insuportável e se o toxicômano tenha entrado por todos os caminhos do inferno, lhe é extremamente difícil levar sua existência e seu imaginário ao extremo de renunciar, tornar-se “ o homem comum”. Também não é de se admirar se um certo número de toxicômanos renuncia, escolhendo morrer ou, em uma derrelição total, afundam em um deserto solitário ou na mais infame marginalidade ou se outros capitulam a meio caminho, tornando-se adeptos dependentes de gurus carismáticos que possuem a arte de manejar o sado masoquismo e a erotização distanciada, insulto interessado na dignidade humana e erro profissional, pois devolve a rua como frangalho quem ouse revoltar-se. 

Não existe outra atitude senão a humana, modesta, relativa. O toxicômano deve abandonar muito de si mesmo, e não ser completo. Ele o consegue quando seu espírito deixa de ser seu próprio escravo e quando sua vida deixa de ser somente máquina de consumir; não há aí vitória de critérios normativos sobre os valores do prazer, do hedonismo e do encontro com deus, nem alguma vingança do medíocre sobre aquele que ousou. O toxicômano está morto porque ele chegou ao fim da viagem. O engano que está em causa  é que ele fez esta viagem em uma história: a do momento sócio cultural em que vive, a do sistema familiar que a fabricou, a do produto. Ela se funde com os dados da história. E esta história condiciona a relação com o real do sujeito. “ o terapeuta não tem de dizer à lei, nem se a tomada dos produtos é boa ou má. Ele se encarrega de situações de sofrimento, deixando à livre escolha de sua vida a qualquer sujeito que se confie nele.  

Seu encontro com o toxicômano e a toxicomania o leva mais alto e mais além do que gostaria de ir. Ocorre que os terapeutas se dedicam com avareza este campo. Eles se expõem a não mais se encontrarem, o que não é grave, mas também, a recusar seus pacientes o direito ao não-sofrimento, o que é escandaloso.

Fonte: https://www.megajuridico.com/tratamento-de-dependencia-quimica-na-visao-de-claude-olievenstein-parte-final/

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