Carta aos Médicos-chefes dos Manicômios

O poeta francês Antonin Artaud (1896-1948) passou nove anos de sua vida internado em hospitais psiquiátricos, e fez na célebre “Carta aos médicos-chefes dos manicômios” uma crítica contundente ao saber médico e às práticas pretensamente terapêuticas às quais foi submetido nos anos de internação. 

Nas palavras de Artaud, os médicos munidos da arrogante tarefa de “medir o espírito”, elaboram uma detalhada classificação das doenças mentais, mas poucos deles dão alguma importância para o conteúdo das imagens que ilustram os sonhos de um esquizofrênico, a resposta é muitas vezes a incompreensão, instrumentalizados pelo seu pretenso saber, autorizados e legitimados pelas leis e costumes, simplesmente ordenam o confinamento. 

Escrita há quase um século, esta crítica de Artaud conserva seu frescor e atualidade. “Sabe-se que os hospícios”, escreveu Artaud, “longe de serem asilos, são cárceres onde os detentos oferecem mão de obra gratuita e cômoda, e onde os suplícios são a regra, e isso é tolerado". O hospício de alienados, sob o manto da ciência e da justiça, é comparável à caserna, à prisão, à masmorra.

Antonin Artaud: Carta aos Médicos-chefes dos Manicômios (1925) 

(Trad. Cláudio Willer)

Senhores,

As leis e os costumes vos concedem o direito de medir o espírito. Essa jurisdição soberana e temível é exercida com vossa razão. Deixai-nos rir. A credulidade dos povos civilizados, dos sábios, dos governos, adorna a psiquiatria de não sei que luzes sobrenaturais. O processo da vossa profissão já recebeu seu veredito. Não pretendemos discutir aqui o valor da vossa ciência nem a duvidosa existência das doenças mentais. Mas para cada cem supostas patogenias nas quais se desencadeia a confusão da matéria e do espírito, para cada cem classificações das quais as mais vagas ainda são as mais aproveitáveis, quantas são as tentativas nobres de chegar ao mundo cerebral onde vivem tantos dos vossos prisioneiros? Quantos, por exemplo, acham que o sonho do demente precoce, as imagens pelas quais ele é possuído, são algo mais que uma salada de palavras?

Não nos surpreendemos com vosso despreparo diante de uma tarefa para a qual só existem uns poucos predestinados. No entanto nos rebelamos contra o direito concedido a homens – limitados ou não – de sacramentar com o encarceramento perpétuo suas investigações no domínio do espírito.

E que encarceramento! Sabe-se – não se sabe o suficiente – que os hospícios, longe de serem asilos, são pavorosos cárceres onde os detentos fornecem uma mão-de-obra gratuita e cômoda, onde os suplícios são a regra, e isso é tolerado pelos senhores. O hospício de alienados, sob o manto da ciência e da justiça, é comparável à caserna, à prisão, à masmorra.

Não levantaremos aqui a questão das internações arbitrárias, para vos poupar o trabalho dos desmentidos fáceis. Afirmamos que uma grande parte dos vossos pensionistas, perfeitamente loucos segundo a definição oficial, estão, eles também, arbitrariamente internados. Não admitimos que se freie o livre desenvolvimento de um delírio, tão legítimo e lógico quanto qualquer outra seqüência de idéias e atos humanos. A repressão dos atos anti-sociais é tão ilusória quanto inaceitável no seu fundamento. Todos os atos individuais são anti-sociais. Os loucos são as vítimas individuais por excelência da ditadura social; em nome dessa individualidade intrínseca ao homem, exigimos que sejam soltos esses encarcerados da sensibilidade, pois não está ao alcance das leis prender todos os homens que pensam e agem.

Sem insistir no caráter perfeitamente genial das manifestações de certos loucos, na medida da nossa capacidade de avaliá-las, afirmamos a legitimidade absoluta da sua concepção de realidade e de todos os atos que dela decorrem.

Que tudo isso seja lembrado amanhã pela manhã, na hora da visita, quando tentarem conversar sem dicionário com esses homens sobre os quais, reconheçam, os senhores só têm a superioridade da força.

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